Todos os anos durante dezembro sinto necessidade de revisitar Drummond.
Talvez pela maneira simples com que o poeta enxerga os acontecimentos humanos.
Talvez pelo desejo de que o espírito natalino adquira também as características de um belo poema.
Com a certeza de que é sempre bom ver e viver este período como momentos únicos e sonhar com mais "dezembros" assim...
Revisitando Drummond.
Texto de hoje:
"Organiza o Natal"
Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10 meses; imperfeitamente embora, o
resto é Natal. É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal
e 2 meses de ano vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo
desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal,
abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.
Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite,
de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon
— sem cortinas. Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos,
bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de
espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o
reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do
ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o supra-realismo, justificado
espiritualmente, será uma chave para o mundo.
Completado o ciclo histórico, os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos
irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma. Não
haverá mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio. O correio só
transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e
burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão,
estará a serviço do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá
jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem
erudição nem pretensão, celebrando o Advento.
A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer,
despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a
terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira de um livro.
A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e
divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém.
Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas,
repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será
descoberta no dicionário: paz.
O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a
jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de
cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de
justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.
Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito
de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro
interior, comunicando-se por um atalho invisível.
A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da
noite, como já compreendera a da manhã.
O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem
entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.
E será Natal para sempre.
(Carlos Drummond de Andrade, livro "Cadeira de Balanço" - 1972)