segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

A Voz Do Silêncio

Pior do que a voz que cala,
é um silêncio que fala.

Simples, rápido! E quanta força!

Imediatamente me veio à cabeça situações
em que o silêncio me disse verdades terríveis,
pois você sabe, o silêncio não é dado a amenidades.
Um telefone mudo. Um e-mail que não chega.
Um encontro onde nenhum dos dois abre a boca.

Silêncios que falam sobre desinteresse,
esquecimento, recusas.

Quantas coisas são ditas na quietude,
depois de uma discussão.
O perdão não vem, nem um beijo,
nem uma gargalhada
para acabar com o clima de tensão.

Só ele permanece imutável,
o silêncio, a ante-sala do fim.

É mil vezes preferível uma voz que diga coisas
que a gente não quer ouvir,
pois ao menos as palavras que são ditas
indicam uma tentativa de entendimento.

Cordas vocais em funcionamento
articulam argumentos,
expõem suas queixas, jogam limpo.
Já o silêncio arquiteta planos
que não são compartilhados.
Quando nada é dito, nada fica combinado.

Quantas vezes, numa discussão histérica,
ouvimos um dos dois gritar:
"Diz alguma coisa, mas não fica
aí parado me olhando!"

É o silêncio de um, mandando más notícias
para o desespero do outro.
É claro que há muitas situações
em que o silêncio é bem-vindo.
Para um cara que trabalha
com uma britadeira na rua,
o silêncio é um bálsamo.
Para a professora de uma creche,
o silêncio é um presente.
Para os seguranças de um show de rock,
o silêncio é um sonho.

Mesmo no amor,
quando a relação é sólida e madura,
o silêncio a dois não incomoda,
pois é o silêncio da paz.

O único silêncio que perturba,
é aquele que fala.

E fala alto.

É quando ninguém bate à nossa porta,
não há emails na caixa de entrada
não há recados na secretária eletrônica
e mesmo assim, você entende a mensagem.
 
 
(Martha Medeiros)

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Coragem para renunciar?


As situações cotidianas muitas vezes cedem lugar para dúvidas e estas, por sua vez, podem não se resumir a questionamentos meramente simbólicos. As dificuldades para resgatar velhos sonhos são comuns e muitas vezes é difícil alcançar as respostas.

“Cortar na própria carne” é uma expressão conhecida, mas difícil de ser colocada em prática. Rejeitar preceitos, velhos hábitos, pressões moralistas ou mesmo ao status social adquirido ao longo dos anos para encontrar o “caminho certo” que nem sempre pode vir a ser realmente o certo, ousar. Sem dúvida são algumas das atitudes mais difíceis. Mas se não arriscarmos, poderia ser diferente?

Tais argumentos são comuns, não será a primeira ou a última leitura acerca de abdicações.

Muitas vezes já tive vontade de largar tudo e até brincava diariamente com o assunto: “se nada der certo, mochila nas costas, um tênis nos pés, pego a estrada e viro hippie”. Por tanta brincadeira passei a refletir sobre a opção destas pessoas.

Tenho certeza que você já reparou em alguma “tribo” hippie que vaga pela cidade ou já teve curiosidade em saber como é a vida em uma de suas comunidades. Eu confesso que já tive a curiosidade de perguntar certa vez, como quem não quer nada além de informações curiosas, sobre este estilo de vida a alguém deste grupo.

Era um rapaz, muito bonito por sinal, que na época não deveria ter mais de 25 anos. Apesar dos trajes muito sujos por sinal, a aparência não era de uma pessoa que nasceu pobre ou sempre viveu nas ruas. Uma maneira de conversar que não escondia que se tratava de alguém com boa educação e um jeito de se expressar que poucas vezes vi em alguém, denotando uma sabedoria que chegou a me espantar, já que no mínimo esperava alguém um pouco mais rude, como era comum (e ainda é) de encontrar entre os hippies pela cidade. O rápido diálogo foi mais ou menos assim:

Ele, como todos os demais do grupo, confeccionavam bijuterias e ficavam na praça central da cidade vendendo a mercadoria. Certo dia a curiosidade aguçada me levou a ir até lá com a desculpa de comprar algo e imediatamente perguntei: “por que escolher este estilo de vida?” No fundo as perguntas eram: “Por que não ter casa, emprego, um nome a zelar, uma família por perto? Qual a vantagem de andar por aí sem destino certo?”...

A resposta? Bem, não houve resposta. Ele sorriu e perguntou: “Acha errado este estilo de vida?”. Como não houve resposta a minha pergunta, claro que eu também não respondi a ele. Sorri de volta e argumentei: “Sempre digo que se nada der certo viro hippie”. Ele simplesmente respondeu: “Então jamais será! Não virei hippie por fracasso, foi uma opção de vida assim como as escolhas que você já fez.” – Nunca me esqueci desta parte final: escolhas que fiz.

Em pouco tempo entendi que coragem para abdicar de tal “normalidade” é uma opção difícil, mas é uma opção e recomeçar não quer dizer renúncia. Os questionamentos diários não nos pedem renúncias e sim recomeço, o que implica em repensar velhas atitudes. Acho que jamais serei hippie um dia, mas pude entender que querer o mais simples, buscar algo diferente do que é apresentado pela sociedade é questão de opção. O que a maioria das pessoas busca não é renúncia, mas simplesmente coragem e ousadia para recomeçar. Talvez na ocasião daquela simples conversa eu tenha aprendido a maior lição de todas, a de respeito pelas opções.

O caminho nem sempre é certo e nem precisa ser tão apropriado. Felicidade é uma causa transitória e por isso que buscá-la é uma atividade tão incansável. Não devemos ser tão sensatos ao ponto de criar moralismos e uma aceitação social constante, o que também não quer dizer que a rebeldia sem causa e a transgressão sejam a saída. Nada de extremos! Sejamos então ponderados, nada de renúncias!

Se você, assim como eu, não tem vocação para ser hippie, monge ou algo parecido, apenas recomece. Já é um ótimo passo.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O jogo de força opostas: um olhar clariceano.




TENTAÇÃO

(Clarice Lispector)


Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.

Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.

Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.

Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.

A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.

Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.

Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.

Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos.

No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.

Mas ambos eram comprometidos.

Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.

A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra esquina.

Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.