Entrevista concedida pelo jurista e escritor alemão Bernhard Schlink à jornalista Leila Sterenberg, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é
um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por
assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30,
11h30 e 17h30.
Nuremberg,
segunda metade da década de 40 do século 20. Primeiro, o julgamento dos
principais responsáveis pelos crimes contra a humanidade da II Guerra
Mundial condenados à pena capital. Depois, uma dúzia de processos contra
médicos, oficiais nazistas e outros envolvidos na morte de milhões de
pessoas. Será que a punição da Justiça é suficiente para reparar o
sofrimento causado por um genocídio? E a responsabilidade do mandante de
um assassinato pode ser comparada à de quem apenas cumpriu ordens. A
Filosofia do Direito se faz perguntas como essas. A arte também. O livro
O Leitor, que ganhou versão pro cinema, é um exemplo. O filme
rendeu à atriz Kate Winslet o Oscar de melhor atriz em 2008. No mesmo
local em que foi filmado o julgamento da personagem de Winslet, nos
arredores de Berlim, Bernhard Schlink foi entrevistado. Jurista e autor
de
O Leitor, além de novelas policiais, romances, contos e
livros jurídicos, Schlink transita entre a reflexão sobre os limites da
lei e da Justiça e a ficção. Escreve em estilo direto, o que ora se
entremeia com história recente da Alemanha, ora tem por ponto de partida
aquilo que estrutura as relações entre as pessoas, sejam verdades ou
mentiras. Pra Schlink, existe uma dimensão humana que a literatura capta
melhor que qualquer ciência e que o Direito. Obras de Schlink foram
traduzidas e publicadas no Brasil pelo Instituto Brasiliense de Direito
Público, em parceria com a editora Saraiva.
Leila Sterenberg — O senhor disse, em uma entrevista ao The Guardian,
que ser alemão é uma carga enorme. Isso está muito ligado à forma como
os alemães veem a si próprios e também sua responsabilidade com a
Europa. Existe alguma alternativa ou se deve aceitar isso?
Bernhard Schlink — Devemos aceitar. Não existe
alternativa a isso. A Europa, na situação atual, que não preciso
descrever, tem a Alemanha como seu parceiro econômico mais forte. A
consequência dessa força é uma responsabilidade. Todos nós queremos a
Europa. Para isso, temos que fazer o que pudermos.
Leila
Sterenberg — A União Europeia e a moeda unificada foram tentativas de
aliviar um pouco essa responsabilidade? Ter uma alma europeia seria mais
fácil do que ter uma alma alemã?
Bernhard Schlink — É uma ótima pergunta. Para
isso, também não há alternativa. Nós, alemães, temos uma alma alemã.
Somos europeus de coração. Não significa que substituímos a alma alemã
pela europeia. Na minha geração, diziam: “Não sou alemão, sou europeu.”
Ou então: “Sou cidadão da comunidade ocidental.” Ou ainda: “Sou cidadão
do mundo.” Quando os alemães começaram a viajar mais, a morar no
exterior, a serem chamados de alemães, eles perceberam que são alemães.
Leila Sterenberg — Os alemães têm uma dívida pela sua própria culpa? E que agora eles têm problemas com as dívidas dos outros?
Bernhard Schlink — É um jogo de palavras
interessante. Eles realmente têm um problema de culpa com o passado. Mas
isso diminui com as gerações. É diferente se foi o pai quem lutou no
exército nazista, ou se foi o avô, que talvez nem tenham conhecido.
Quanto mais distantes são as gerações, menos se tem culpa. Já as
dívidas, por sua vez, crescem. Não que uma coisa tenha a ver com a
outra. Mas realmente as dívidas crescem. Isso será o ônus da próxima
geração.
Leila Sterenberg — O Prêmio Nobel da Paz foi dado à Europa. O que esse prêmio significa para o senhor?
Bernhard Schlink — Acho que o prêmio que o
comitê tem mais dificuldade para definir é o da Paz. Entregar esse
prêmio a uma instituição é quase uma fuga. E também tivemos escolhas
erradas. É mais difícil escolher um nome, seja Kissinger, Begin... Dar
esse prêmio difícil à Europa é menos arriscado.
Leila
Sterenberg — O alemão talvez seja a única língua do mundo que tenha um
termo para “lidar com o passado”. O inglês usaria no mínimo quatro
palavras. “accounting for the past”.
Bernhard Schlink — “Coping with the past”.
Leila Sterenberg — É uma especificidade linguística, mas mostra a relação dos alemães com seu passado?
Bernhard Schlink — Sim, o passado do Terceiro
Reich, a guerra, o holocausto. É uma carga especial, uma culpa
específica. E temos que lidar com isso. Não se pode simplesmente
esquecer ou deixar para trás. Lidar com o passado é uma tentativa de ser
justo. É captá-lo para poder conviver com essa carga e essa culpa.
Leila
Sterenberg — Sua carreira de autor começou com um romance policial que o
senhor escreveu com Walter Popp. Como o senhor descreveria o
desenvolvimento do romance policial para uma ficção madura, bem
desenvolvida?
Bernhard Schlink — O romance policial também
pode ser uma ficção madura. Não penso em categorias. Eu comecei com o
romance policial porque eu gostava de ler esses livros. Escrevê-los é um
prazer tão grande quanto lê-los. Começar com isso talvez seja o
primeiro passo de um jurista. Não levo meus casos para os meus livros.
Minha área é constitucional, não é criminal. Mas, no romance policial,
assim como no Direito, desenvolve-se o problema para em seguida
resolvê-lo. Essa é a estrutura desse gênero. Quando comecei, eu não
queria escrever sobre mim. Muitos primeiros livros são sobre o próprio
autor. Eu não queria isso. Mas nunca me propus a escrever somente
romances policiais. Eu queria escrever uma história que eu quisesse
contar.
Leila Sterenberg — De onde veio sua vontade de escrever? O senhor já foi professor e jurista.
Bernhard Schlink — Eu não saberia lhe dar uma
boa resposta. Eu sempre escrevi. Na escola, escrevi poemas ruins,
pequenas histórias. Quando comecei a escrever cientificamente, descobri o
prazer desse tipo de escrita. Durante um tempo, fiz isso, mas percebi
que faltava algo. Comecei a experimentar a escrever outras coisas. De
certa forma, foi um retorno.
Leila Sterenberg —
Aparentemente, na Alemanha atual, há uma tendência na literatura de
lidar com esse passado. O senhor é tido como fundador ou pelo menos o
representante mais conhecido dessa vertente. Penso no livro Em Tempos de Luzes Minguantes, que é a história de uma família. Eu vejo nele a influência de sua literatura. O que o senhor acha?
Bernhard Schlink — Eu não poderia falar em
influência. Eu li o livro. Acho excelente. Mas acho que leva quase uma
geração para que se possa escrever sobre um período. Foi assim na
Primeira Guerra Mundial. A literatura veio mais tarde, nos anos 1920,
1930. Depois da Guerra do Vietnã...
Leila Sterenberg — Joseph Roth, com A Cripta dos Capuchinhos?
Bernhard Schlink — Eu escrevi O Leitor
nos anos 1990 sobre os 1950, 1960. E agora começa a literatura sobre a
Alemanha Oriental. Não sei se é literatura para lidar com o passado. É
uma literatura sobre o passado. As pessoas vivem como foram moldadas
também durante a próxima geração por meio desses destinos,
acontecimentos e capacidades. É uma forma de assegurar isso na
literatura.
Leila Sterenberg — O senhor nasceu no início dos anos 40. Como é sua relação pessoal com a guerra e o pós-guerra?
Bernhard Schlink — Eu cresci na Alemanha do
pós-guerra. Tive a sorte de ser criado em Heidelberg. A cidade não foi
destruída. Meus avós moravam não muito longe, em Darmstadt. É essa minha
lembrança. O caminho da estação até o povoado deles, atravessando
lugares destruídos que logo foram reconstruídos. E os veteranos de
guerra, que voltavam para o país. Os feridos, os danos causados à imagem
da cidade. Era um mundo à parte a Alemanha pós-guerra.
Leila Sterenberg — O conto O Outro, do livro Amores em Fuga,
também foi filmado. Nele, o marido de Lisa prefere lidar com seu
próprio passado? O conto não trata do passado alemão, e sim conta uma
história pessoal.
Bernhard Schlink — Muitas das minhas histórias não têm a ver com o passado. Elas narram destinos ou momentos da vida.
Leila Sterenberg — E o que o senhor acha dessa filmagem?
Bernhard Schlink — Com esse filme, não fiquei
tão satisfeito. Os atores são excelentes. O diretor fez um ótimo
trabalho. Mas acho que o filme tenta amplificar uma história calma e
parada. Isso não funcionou. Ele transforma uma história melancólica, com
um fim melancólico, num final feliz. Isso me incomodou.
Leila Sterenberg — Também em Amores em Fuga,
há um conto que tem a ver com a Alemanha Oriental. Não é só com a
guerra que se deve lidar hoje mas também com as ações da Stasi?
Bernhard Schlink — Não dá para comparar. De
jeito nenhum. De fato, existe o papel da Stasi em relação à família.
Também na amizade, relações estreitas. E os envolvidos têm que conviver
com isso. Sim, de certa forma, é lidar com o passado.
Leila Sterenberg — O que a reunificação significou para o senhor?
Bernhard Schlink — Estou em Berlim desde
janeiro de 1990. Vivi intensamente a reunificação, os debates sobre a
constituição da Alemanha Oriental, a recuperação da Universidade de
Humboldt. A reunificação é um momento muito feliz na minha vida. Era a
Alemanha dividida novamente junta, crescendo junto. Isso me deixa feliz.
Volta e meia penso nisso. Vou de bicicleta para a universidade, cruzo o
Portal de Brandenburgo e penso: “Eu vivi isso.”
Leila Sterenberg — O senhor é professor e tem contato com os jovens. Ser alemão é uma carga também para a nova geração?
Bernhard Schlink — De uma geração para outra,
isso se aliviou. Meus alunos passam um ano de estudos na Holanda, na
França, em Israel... Se alguém toca no assunto do passado alemão, eles
sabem que é por causa de um trauma na família. Eles sentem que têm uma
dívida. Eles sabem e isso é bom. Mas experimentam o passado como algo
que preocupa, um passado difícil, violento. Mas a sensação de culpa tem
desaparecido na geração jovem.
Leila Sterenberg — A Justiça em geral está muito longe das pessoas comuns. O senhor não concorda?
Bernhard Schlink — O Supremo Tribunal é a
instituição mais bem vista na Alemanha. Antes do presidente, do
Parlamento, do governo. Mesmo das instituições sociais. É uma
instituição que não tem um caráter de distância. Desperta uma confiança.
As transmissões dos julgamentos são um tema que gera grande discussão. O
argumento é claro. Pode haver uma educação ao se confiar na Justiça e
conhecer o Direito. O problema é que há também um teatro em que os
participantes fazem o papel deles mesmos. Se atuam para um público, não
se alteram certas condições. Existem lados diferentes. Ainda não
decidimos a tornar isso público. Ou seja, na mídia.
Leila
Sterenberg — Quando o Supremo Tribunal alemão reconheceu as medidas de
resgate de vigilância aos bancos, eu pensei: “O futuro da Europa está
nas mãos desses juízes.” É uma enorme responsabilidade.
Bernhard Schlink — É uma responsabilidade
enorme. E os juízes fazem apenas algumas pequenas correções. Eles sabem
que, quando as decisões andam nessa direção, não podem simplesmente
mandar caminhar em outra direção. Um tribunal não pode fazer isso. Pode
fazer somente pequenas correções. É essencial que se envolva o
Parlamento. A Câmara zela por reforçar o envolvimento do Parlamento. O
governo tem uma tendência de se bastarem. A Câmara lembra a eles que não
é bem assim.
Leila Sterenberg — O senhor dá aula de
Filosofia do Direito. Por causa do desenvolvimento da ciência e da
tecnologia, existem novos temas para os filósofos do Direito?
Bernhard Schlink — Sempre existem novos temas.
Sempre existem os antigos, que se renovam. Perguntas sobre justo e
injusto, responsabilidade... São antigas, mas podem estar sempre novas.
Mas, com o desenvolvimento da Biomedicina da indústria e da técnica e
das mudanças na comunicação, existem novos ajustes entre as pessoas,
novas possibilidades sobre o que fazem pelas outras, para o bem ou para o
mal, novas perguntas sobre o que é justo ou não... Disso se ocupam os
filósofos do Direito.
Leila Sterenberg — E as perguntas
que nos fazemos há séculos: “O que é o Direito?” “Qual é o limite entre a
Lei e a ética individual?”
Bernhard Schlink — Assim como o limite entre a
vida e a morte. “Quando começa a vida humana?” “Se é o indivíduo, o ser
humano, como devemos lidar com isso?” Essas são perguntas novas.
Leila Sterenberg — A literatura pode responder a alguma dessas questões melhor do que Lei?
Bernhard Schlink — Existe um desdobramento dos
problemas, um desdobramento de complexidade no psíquico, mas também no
trato das pessoas umas com as outras, que a literatura encontra de um
modo melhor. Melhor que o Direito, a Psicologia, a Sociologia. Existe
uma dimensão humana que a literatura capta melhor. Não soluciona
problemas, pois não é sua tarefa. Elas nos dão uma calma para lidar com
os problemas.